Dura realidade em 5% dos lares de MS, fome leva da humilhação à cadeia

Na rua Alan Kardec, homem procurava alimentos em meio aos sacos de lixo

CVNEWS/CGNEWS


No Centro de Campo Grande, homem busca comida no lixo: 'Pessoal maltrata se pedir'. (Foto: Henrique Kawaminami)

As panelas vazias são realidade em 5% dos lares de Mato Grosso do Sul e desencadeiam uma espiral que vai da humilhação até à cadeia. Na rua Alan Kardec, um homem procurava alimentos em meio aos sacos de lixo.

A cena foi avistada pela reportagem no último sábado (dia 4), perto da antiga rodoviária de Campo Grande. O homem leva uma bandeja de danone, uma embalagem com restos de calabresa e de sanduiche. Ele é dependente químico, perambula pelas ruas e não gosta de pedir. “Porque o pessoal maltrata', diz o rapaz de 28 anos.

De acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a insegurança alimentar rondava 37% dos lares de MS em setembro de 2020. Mas a situação mais grave, a da fome, era realidade em 5% das casas, num total de 41 mil domicílios. A insegurança alimentar é classificada em leve, moderada e grave.

Na teoria, a insegurança alimentar na casa da gestante Alessandra Moraes Alexandre, 28 anos, se enquadra na moderada. A família precisou trocar o padrão alimentar para a lista do mercado caber no bolso. Na prática, a carne vermelha perdeu a vez para o frango, ovo, salsicha, pelanquinha e couro.

 “A renda do meu marido é de um salário mínimo e sobra R$ 300 para fazer compra. Fico revezando o gás com o fogão à lenha. A situação é complicada por causa do presidente, eu acho que a culpa é dele. Antes, as coisas eram mais baratas', conta Alessandra.  Ela e o marido dividem uma casa popular no Bairro Dom Antônio Barbosa com três crianças, de 12,9 e 4 anos.

A dispensa vazia é rotina para o casal Carlos Trancosa, 62 anos, e Maria Elsa Ortuñés, 59 anos. Eles são venezuelanos e vendem balas no semáforo para sobreviver. Não há garantia de que vai ter comida na mesa. Hoje, tinham alguns poucos pedaços de frango, arroz e feijão.  A comida compete com outras necessidades básicas: R$ 400 de aluguel, R$ 35 de água, R$ 135 de luz e R$ 500 em medicamentos.

A fome que prende - Levantamento da Defensoria Pública mostra que em um ano, 32 pessoas foram presas em flagrante por furto de alimentos em Campo Grande. Vinte delas buscavam a mistura, tão ausente no prato diante de orçamentos raquíticos. A lista de itens furtados inclui pacote de pescoço de frango, mandioca, coentro, achocolatado, 300 gramas de alho e um pacote de orégano.

No levantamento, sem citar nomes para não identificar os autores dos furtos, mas vítimas da miséria, surge a história de uma mulher de 30 anos, à época mãe de uma criança de 5 meses ainda em amamentação.

Sem antecedentes criminais, ela foi presa em maio de 2021 após furtar 2 quilos de alcatra, um pacote de pescoço de frango, 100 gramas de salame, um quilo de mandioca, um coentro e dois leites achocolatados. Ela foi solta um dia após a prisão em flagrante.

A necessidade também foi a justificativa de um homem de 57 anos, pai de um adolescente e desempregado há dois anos. À Justiça, contou que estava arrependido de ter furtado três quilos de carne avaliado em R$ 130, mas não tinha alimento em casa. Ele foi solto e, posteriormente, o próprio Ministério Público, a quem cabe a acusação, pediu o arquivamento do inquérito policial. O levantamento foi realizado entre março de 2021 e março de 2022.

Mapa da fome - Divulgado nesta quarta-feira (dia 8), o “2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil' mostra que a escalada da fome é nacional. Em 2022, 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer.

A pesquisa foi realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. O levantamento não traz dados por Estados, mas a região Centro-Oeste, onde se localiza Mato Grosso do Sul, tem 2,1 milhões de pessoas passando fome. A título de comparação, toda a população de MS soma 2,8 milhões de habitantes.

Das  famílias entrevistadas pela pesquisa, 8,2% (quase 16 milhões de pessoas) relataram sensação de vergonha, tristeza ou constrangimento pelo uso de meios que ferem a dignidade para conseguir colocar comida na mesa.

As estatísticas foram coletadas entre novembro de 2021 e abril de 2022, a partir da realização de entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, distribuídos nos 26 Estados e no Distrito Federal.



COMENTÁRIOS