Falso conflito entre grãos, bois e árvores: como o agro brasileiro já venceu essa questão

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A imagem que ilustra esta reportagem, com vacas leiteiras descansando à sombra de árvores num pasto verdejante e em situação de visível bem-estar, é o retrato de uma revolução de sustentabilidade na agropecuária brasileira. Mais alguns dias, o rebanho irá para outra área. E grãos serão cultivados onde antes estava a pastagem. O rodízio seguirá até que, em alguns  anos, a madeira das árvores será colhida e o ciclo completo poderá recomeçar. É o chamado sistema integração-lavoura-pecuária-floresta, ILPF, que por ser tão jovem – começou no início dos anos 2000 – ainda é novidade para muita gente e carrega enorme potencial de expansão.

Por anos a fio, reunir numa só frase bois, soja e árvores tem sido um lugar-comum da crítica ao agronegócio, por suposta pressão sobre a floresta amazônica. Uma generalização infundada que tenta jogar nas costas dos produtores a culpa de outros, de gente que não produz nada, mas destrói, agindo à revelia da lei. “Agricultor não invade terra, quem invade terra é grileiro, é madeireiro. Mas essas manchas cometidas por aventureiros são utilizadas por nossos concorrentes para detratar o agro brasileiro, infelizmente é assim. Precisamos acabar com isso para eliminar esse argumento, aqui e lá fora', avalia Roberto Rodrigues, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-ministro da Agricultura.

Resultados obtidos a campo mostram que a Integração Lavoura Pecuária Floresta pode ser uma das melhores respostas a essa distorção, que insiste em opor agricultura e meio ambiente. A ILPF ocupa hoje, de Norte a Sul do país, uma área de 18,5 milhões de hectares, maior do que Inglaterra e País de Gales juntos. Nesse espaço, rebanhos, pastos e grãos têm uma relação de simbiose com altos ganhos de produtividade. Quando as árvores são acrescentadas ao “consórcio', o que já é realidade em 2 milhões de hectares, o ganha-ganha fica ainda mais expressivo. “Em diversos trabalhos de pesquisa, há um aumento de 20% a 30% da produtividade só pelo fato de ter o boi à sombra', destaca Renato Rodrigues, pesquisador da Embrapa Solos e presidente do conselho gestor da Rede ILPF.

O sistema poderia avançar a passos mais largos, não fosse a desconfiança de alguns produtores, receosos de introduzir árvores em áreas dedicadas aos grãos. Para vencer esses temores, a Embrapa guia os agricultores em visitas a uma série de fazendas-modelo pelo país. E recomenda que façam experiência em uma área menor. “É baixíssimo o índice de desistência. Quem vai para a ILPF não volta ao sistema de monocultivo', destaca Renato Rodrigues.

Na prática, no sistema ILPF completo – que inclui não somente a rotação de pastos e lavoura, mas também o “F' de floresta – o produtor planta fileiras de árvores afastadas de 9 a 24 metros umas das outras e usa as faixas centrais para cultivar primeiro soja (ou outro grão), depois pastagem, seguida da introdução do gado de corte ou leiteiro. O ciclo grão-pastagem-gado vai se alternando até que, no sétimo ano, no caso do eucalipto, é feita a primeira de três colheitas da madeira. Se a opção for uma madeira nobre, como o baru, o mogno e o ipê, o tempo de produção pode se alongar, mas o valor da colheita se multiplica.

“Todo o lucro da madeira acaba sendo líquido, porque ele já pagou os investimentos com a renda da carne, do grão, do leite', estima Rodrigues, que calcula que o payback do investimento se dá após três a quatro anos.

O que acontece nessa combinação grão-gramínea-árvore, além de enriquecer a terra, é de encher os olhos – devido à beleza cênica da paisagem – e também o bolso dos produtores. O case mais famoso do país está na fazenda Santa Brígida, de Ipameri, Goiás. Em 2006 era uma propriedade de pecuária com pasto degradado que dava prejuízo de R$ 300 por ano, por hectare. Hoje, após 15 anos de ILPF, a rentabilidade está em R$ 7 mil por hectare. Marize Porto Costa, dona da fazenda, é entusiasta da ILPF, mas recomenda um cuidado na introdução do elemento florestal.

“Uma das regras, antes de plantar, é ter quem compra. No meu caso, a intenção era vender para produzir energia. Mas como o preço na época do primeiro corte estava muito baixo, resolvi reconduzir para outras finalidades. A madeira ficou mais tempo no solo, pegou porte para uso em móveis, que tem maior valor agregado', relata.

Outros números que falam por si são os da fazenda Boa Vereda, do município de Cachoeira Dourada, também em Goiás. Alípio Pacheco herdou a propriedade da família no início dos anos 2000 com o gado rendendo 4 arrobas por hectare/ano, contra uma média nacional de 7 arrobas. Ou arrendava para o cultivo de cana ou tentava algo diferente. Hoje, nos talhões com ILPF, a produção de carne saltou para 18 arrobas por hectare/ano.

E os bois agradecem por se alimentar à sombra. Menos fustigados pelo sol, o consumo de água dos animais diminuiu 35%. A produção de soja rende em média 70 sacas por hectare, e, a de milho, 150 sacas. A madeira, que também não existia na equação anterior, atualmente rende 45 metros estéreos por hectare/ano. A um preço de venda de R$ 80 da madeira em pé (custos da extração e transporte ficam a cargo do comprador), só o elemento florestal agrega R$ 3,6 mil por ano, por hectare.

E o que acontece com o solo? “Dez anos depois de extrair 18 arrobas de carne e 45 metros de madeira por hectare por ano, fizemos uma nova análise e todos os indicadores do solo estavam acima dos valores iniciais', diz Alípio, que é também pesquisador da Embrapa Florestas. Parte da explicação agronômica está na chamada “ciclagem dos nutrientes'. O sistema de raízes das árvores, e da braquiária, busca em profundidade os elementos da tabela periódica que não seriam alcançados pelas leguminosas. E as folhas que caem alimentam essas plantas continuamente. Quando o solo está coberto por braquiária, as longas raízes do capim aumentam a aeração da terra e favorecem a atividade microbiológica, retendo umidade essencial para enfrentar períodos de seca.

O ganho na qualidade dos pastos e o conforto proporcionado pelas árvores têm atraído tanto produtores de gado de corte como de leite. Além de beber menos água, as vacas ovulam mais do que as que não têm abrigo do sol. “Surpreende? Ora, a gente também gosta de uma sombra', sublinha Pacheco.

Mesmo quando a integração não inclui o elemento “floresta', apenas a lavoura e a pecuária, as pesquisas apontam que a produtividade de soja aumenta em 5 sacas por hectare. “A braquiária é uma gramínea, quando ela é plantada faz uma assepsia na sua área de leguminosa', explica Pacheco. Outro aspecto notado pelo produtor nas áreas com ILPF foi a ausência da mosca de chifre, que perturba o rebanho e reduz o ganho de peso. Um entomologista visitou a fazenda e deu uma possível explicação: as árvores mantêm por perto os inimigos naturais da mosca, controlando sua infestação.

“Quando a gente faz esse sistema integrado, eu digo que a fazenda se transforma num predinho de dois andares. No térreo, lavoura, pastagem e boi pastando; em cima, produção de madeira. Todos os dias, onde eu estiver, às 6h da manhã as árvores começam a trabalhar para mim', brinca Pacheco, referindo-se ao processo de fotossíntese que retira carbono da atmosfera. Em breve, espera ele, esse serviço de fixação de carbono das árvores poderá render novos dividendos.

O governo brasileiro publicou neste mês um decreto para regulamentar o pagamento por créditos de carbono. “A fase agora é de desenvolvimento de ferramentas, toda essa parte financeira precisa ter uma metodologia confiável e robusta, com base científica forte e que seja aceita pelos mecanismos internacionais. Nos próximos dois anos a comercialização de créditos de carbono será uma realidade em grande escala no país', acredita Rodrigues, da Rede ILPF.

Ao que tudo indica, é uma questão de tempo, e de certificação, até que os pagamentos por créditos de carbono cheguem aos produtores do sistema ILPF. O reconhecimento internacional já foi conquistado. Alípio Pacheco estará no dia 12 de junho na Alemanha para receber o prêmio Corteva de Líderes Globais Positivos para o Clima. Antes da pandemia, esteve na Bélgica. Neste ano, já fez apresentações na China e no Paraguai. Foi vencedor do concurso Câmara Brasil-Alemanha de sustentabilidade, entre outras distinções.

Para traduzir o que representam os resultados da Integração Lavoura-Pecuária-Floresta, Pacheco recorre a um neologismo: inovabilidade. Mistura de inovação com sustentabilidade. “Tenho certeza que essa forma de trabalhar ou será o sistema de produção do futuro ou vai estar entre os sistemas de produção do futuro. Vou contar a definição mais bonita de solo que já ouvi: é uma fina camada que reveste todo o planeta Terra e nos protege da fome. A ILPF é o sistema que garante deixar um solo mais rico para as gerações futuras'.



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